VACINA SUSPENSA NA AMÉRICA E CONSIDERADA PERIGOSA CONTINUA A SER APLICADA NA GUINÉ-BISSAU 

Estudo americano-dinamarquês está a testar o uso da vacina contra a poliomielite para o combate à covid-19. Colectivo de artistas, cientistas e activistas denuncia falta de transparência. Experiência semelhante, liderada pelo mesmo médico, foi considerada perigosa pelas autoridades norte-americanas.

Um colectivo de activistas, cientistas, artistas e jornalistas guineenses denunciou, através de uma nota enviada à imprensa, a falta de transparência das autoridades sobre um estudo científico cujo trabalho de campo está a decorrer na Guiné-Bissau, com a participação de mais de três mil guineenses, sem que haja informação pública sobre o mesmo e sem se saber se os direitos das pessoas que estão a participar no ensaio clínico estão a ser salvaguardados.

Uma experiência semelhante, liderada pelo cientista Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da sida, acaba de ser suspensa nos Estados Unidos porque as autoridades o consideraram perigoso.

Sem porem em causa a validade científica do estudo, os dez membros do Colectivo chamam a atenção que a busca de uma resposta à pandemia do novo coronavírus “não se poderá sobrepor a direitos humanos fundamentais”, daí que “o enquadramento legal e a regulamentação aplicável a ensaios clínicos envolvendo seres humanos” seja “particularmente exigente garantindo a protecção dos participantes neste tipo de estudo experimental”.

“Preocupados com a aplicação de ensaios clínicos na Guiné-Bissau, um país com um sistema de saúde frágil e pouco funcional, características exacerbadas pela pandemia da covid-19 e pelo contexto de instabilidade institucional, [o Colectivo] tem vindo a exigir o respeito por um dos princípios básicos na execução de ensaios clínicos: transparência!”, lê-se na nota à imprensa.

O estudo visa perceber se a vacina contra a poliomielite (também chamada pólio ou paralisia infantil), poderia conferir alguma imunidade contra a infecção pelo novo coronavírus, tal como a da BCG (contra a tuberculose). Há vários ensaios clínicos a decorrer noutros pontos do mundo para testar a hipótese da BCG.

Só que as autoridades guineenses só falaram em público sobre este ensaio clínico porque apareceu uma notícia no jornal brasileiro Folha de S. Paulo, que referia que o trabalho de campo estava a ser feito na Guiné-Bissau.

A notícia motivou uma denúncia do activista social e ambiental Miguel Barros no Twitter e a notícia apanhou muitos de surpresa na Guiné-Bissau. O que levou o Colectivo a escrever cartas às autoridades de saúde e aos envolvidos no projecto para tentar esclarecer todas as dúvidas. A falta de respostas levou-os a tornar públicas as suas preocupações e exigências de transparência.

O Colectivo é composto pelo produtor e actor Welket Bungué, a bióloga Bianca Flamengo, o activista Adama Baldé, o músico Manecas Costa, as actrizes Ady Batista e Bebetidja Sadjo, o jornalista Carlos Pereira, o artista plástico Nú Barreto, o escritor Edson Incopté e o modelo Fernando Cabral.

Garantindo que nunca “questionou a validade do racional científico para o estudo”, porque não tem informações para isso, o Colectivo diz que a sua preocupação, “para já, é a de garantir que a aplicação de ensaios clínicos na Guiné-Bissau, a fazer-se, segue os procedimentos obrigatórios e aplicáveis ao país”, diz a nota.

“Todos os documentos do estudo devem ser publicamente acessíveis e a participação de voluntários deverá seguir as disposições legais em aplicação e que garantem o consentimento informado prévio”, acrescentam o texto.

O Colectivo refere que sem o protocolo do estudo conhecido, nem a identificação dos financiadores e responsáveis pela execução, assim como o seu processo de autorização registados em plataforma certificada, tal como é exigido a nível internacional, as dúvidas levantam-se.

“Nenhuma das comunicações feitas pelo Alto Comissariado de Luta Contra a Covid-19, pelo ministro da Saúde, pelo Projecto Saúde de Bandim e, no dia 23 de Junho, pelo Comité de Ética que aprovou o estudo em retorno à nossa carta de 19 de Junho, respondem a estas questões”, explica a nota.

O Ministério da Saúde limitou-se a confirmar, na semana passada, segundo a Lusa, a existência do estudo e que cabe ao Conselho de Ministros pronunciar-se sobre qualquer “decisão relacionada com a aplicação de vacinas em toda a extensão do território da Guiné-Bissau”.

“O ministro da Saúde esclareceu que o que está em curso é um estudo promovido pelo Projecto de Saúde de Bandim, visando apurar a validade ou a pertinência científicas do uso de vacinas até aqui aplicadas no combate à poliomielite para o combate da nova pandemia”, referiu o comunicado do ministério.

De acordo com a Folha de S.Paulo, os cientistas por trás do estudo – uma equipa americano-dinamarquesa que inclui Robert Gallo, director do Instituto de Virologia Humana da Universidade de Maryland, que ajudou a descobrir o vírus que causa a sida – defendem a possibilidade de a vacina oral contra a poliomielite poder ser usada eficazmente para a prevenção dos casos de covid-19 quando administrada regularmente.

Para testar a hipótese foi escolhido um grupo de 3400 adultos guineenses com mais de 50 anos para, durante seis meses, metade receber a vacina contra a pólio e a outra metade apenas um placebo. O estudo é coordenado no terreno pelo Projecto de Saúde de Sandim, criado em 1978 por Peter Aaby, professor na Universidade do Sul da Dinamarca, uma das entidades envolvidas no estudo, que admite suspender o estudo se assim for a vontade da população.

O projecto financiou em 2012 a criação do Centro de Investigação em Vitaminas e Vacinas, destinado a investigar efeitos não-específicos de vacinas, e que já participou noutro estudo sobre o uso da vacina da pólio que chegou à conclusão que, quando dada à nascença, a vacina reduz a mortalidade infantil em 32%.

“O mundo da investigação, dos ensaios clínicos ou qualquer outro tipo de estudo experimental, assenta em princípios de transparência, ética e responsabilidade pública”, refere o Colectivo. “Estudos de investigação que não estão abertos a escrutínio, que escolhem o sigilo em detrimento da transparência, que reagem na defensiva a questões pertinentes exigindo o seguimento de padrões internacionais, são estudos que não têm lugar no mundo investigativo sério.”

Vírus mais perigoso

Um estudo semelhante, levado a cabo pelo mesmo Robert Gallo, com várias instituições americanas, foi suspenso pelo Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecto-contagiosas dos Estados Unidos por razões de segurança. Segundo o New York Times, a agência pública justificou a sua decisão pela possibilidade de o vírus da pólio poder acabar no sistema de abastecimento de água e infectar outras pessoas. No entanto, as experiências na Guiné-Bissau e na Rússia continuam.

A vacina da poliomielite utiliza um vírus enfraquecido para accionar o sistema imunitário e impedir que a pessoa desenvolva a doença, tal como acontece com outras vacinas. No entanto, existe a hipótese de acontecer uma mutação no vírus capaz de o tornar mais agressivo.

Os casos são raros, é certo – o risco de paralisia é de um em cada 2,7 milhões; no entanto, como a ideia de que a vacina da poliomielite pode ajudar-nos a ficar imunizados contra outras doenças virais implica que a mesma seja aplicada regularmente (uma vez por ano, por exemplo), porque a imunização é de curta duração, multiplicar a inoculação, torna a possibilidade de a doença, que hoje está quase erradicada, de voltar com mais força.

Notabanca; 26.06.202

Publicada por notabanca à(s) 02:55