OPINIÃO: Jomav, do narcisismo político ao suicídio político: memórias de uma morte política anunciada

No dia 23 de Maio de 2014, três dias depois de ser declarado vencedor da segunda volta das eleições presidenciais da Guiné-Bissau e no dia seguinte ao seu adversário, Nuno Nabiam, ter aceite a derrota depois de 48 horas antes de ter ameaçado rejeitar os resultados eleitorais, José Mário Vaz dirigiu-se ao Hotel Azalai em Bissau para se encontrar com o presidente Joaquim Chissano, Chefe da Missão de Observação da União Africana e ex-enviado especial do Secretário-Geral das Nações Unidas à Guiné-Bissau (2005).

José Mário Vaz não pedira para se avistar com o presidente Chissano na sua qualidade de Observador-Chefe da União Africana, mas sim na de ex-Chefe de Estado. Jomav vinha com um pedido muito específico: queria que o presidente Chissano o ajudasse a (re)estruturar o Gabinete da Presidência da Guiné-Bissau. Especificamente, queria o conselho do presidente Chissano sobre as várias posições que deveriam existir num Gabinete da Presidência. E trazia, ele próprio, algumas ideias: queria rodear-se de uma equipa de assessores técnicos para as diversas áreas de governação: economia, finanças, educação, saúde, etc.

O presidente Chissano escusou-se a dar uma resposta positiva à solicitação, argumentando falta de tempo, mas durante longos minutos tentou fazer ver a José Mário Vaz que a estrutura que este visualizava para o seu Gabinete da Presidência não fazia muito sentido, pois diferentemente dum sistema presidencialista, como Moçambique, onde o PR é também o Chefe do Governo, no sistema semipresidencialista/semiparlamentarista como o da Guiné-Bissau, o Chefe de Estado não tem funções nem responsabilidades executivas, pois estas pertencem ao Conselho de Ministros chefiado pelo primeiro-ministro. Seria, portanto, redundante, o Presidente da República rodear-se do tipo de assessores que ele pretendia.

À medida que o presidente Chissano lhe dava esta explicação, a expressão facial de Jomav foi transformando-se: o ar solícito de discípulo e aluno foi dando lugar à estupefacção e à incredulidade. Adivinhava-se-lhe pelo olhar o que lhe ia na cabeça: “What are you talking about?! Como não vou mandar?! É claro que que sou eu quem vai mandar!” Era como se José Mário Vaz nunca tivesse lido a Constituição do seu próprio país ou, apesar dela, nunca lhe tivesse passado pela cabeça manter-se afastado dos assuntos executivos, como a Constituição da Guiné-Bissau determina, sobretudo tendo como primeiro-ministro Domingos Simões Pereira, o seu némesis político dentro do PAIGC. E assim o encontro terminou, de forma desconfortável e inconclusiva.

À saída do encontro, tiraram-se as fotos da praxe do ex-presidente ao lado do presidente-eleito, mas quando um funcionário superior da União Africana pediu para posar para uma foto junto a Jomav, este recusou o pedido de forma brusca, dizendo que as pessoas poderiam usar essas fotos no futuro para conseguirem favores, alegando intimidade com o Chefe de Estado. O já desconfortável ambiente ficou ainda mais pesado e foi preciso o admirável tacto do presidente Chissano, que prontamente se ofereceu para fazer uma foto com o funcionário da União Africana, dizendo que já ninguém conseguia favores à custa do seu nome, para desanuviar a desagradável situação.

Tanto a conversa com o presidente Chissano como o incidente da fotografia foram indícios claros de estarmos na presença de um narcisista político, cujas acções futuras só poderiam causar problemas sérios à frágil arquitectura governativa guineense. Os meses e anos que se seguiram vieram provar os receios suscitados por aquele encontro: Jomav não descansou enquanto não se viu livre de Domingos Simões Pereira como primeiro-ministro e nunca parou de se imiscuir nas zonas de governação que se encontram para além dos limites constitucionais que lhe são impostos, fomentando e fabricando querelas e divergências políticas, na melhor tradição de dividir para reinar, e tentando assegurar que os únicos primeiros-ministros possíveis fossem os que lhe servem de marionetes nesse jogo.

No entanto, a soberba de José Mário Vaz levou-o ao longo destes 5 anos de forma cega a embates constantes não só com o bloco regional de que a Guiné-Bissau faz parte, a CEDEAO, sob cuja tutela política e de segurança tem vivido nos últimos anos, como mais importantemente com as estruturas e lideranças do PAIGC, o partido que lhe serviu de plataforma para chegar à presidência da República e, paradoxalmente, o único veículo viável para uma possível recandidatura com probabilidades de sucesso, já que Jomav nunca dispôs de base política suficiente fora do PAIGC e agora nem mesmo dentro deste.

Hoje, a 3 semanas das eleições presidenciais de 24 de Novembro, assiste-se aos últimos estertores do suicídio político a que foi condenado o agora pálido candidato independente, sem apoio partidário de relevo, pelo narcisismo político, já patente no presidente-eleito, naquela suite do hotel Azalai naquele dia de Maio de 2014.

Miguel de Brito

Ditadura de Consenso